O processo de prestar contas, ainda que decorra de questões legais, requer o engajamento do profissional contábil sob a ótica da transparência, no sentido de levar ao público, de forma compreensível, a qualidade da informação contábil, além do aspecto quantitativo do preço. Segundo Adriano de Andrade Marrocos, sócio da Marrocos Auditores Independentes S/S e conselheiro no Conselho Federal de Contabilidade (CFC), tão importante quanto saber que foi aplicado um milhão de reais, é saber onde e como foi. Ele conta que, desta forma, evitamos que o número, que geralmente traz grande impacto, seja o único critério de avaliação de uma gestão. O profissional contábil deve assumir seu papel nesse processo tão importante para a população. Confira a entrevista completa com ele abaixo.
Newsletter IPC: De que forma você acredita que a tecnologia tem ajudado na construção de empresas mais transparentes?
Adriano de Andrade Marrocos: essa é uma questão importante. É fato que as empresas investiram muito em tecnologia, mas, para controle de seus dados e patrimônio. Poucas buscaram um contato direto com a sociedade e, menos ainda, com as pessoas. As grandes até implantaram em seus sites com o “acesso do acionista” ou algo similar, com o fornecimento de dados e relatórios, geralmente oficiais.
Os governos, tanto federal quanto estaduais, e alguns municipais, vem investindo em programas de geração de dados com plano de contas padronizados, como é a ECD (Escrituração Contábil Digital). Ou seja, descrente de que seria fácil o processo de análise, criaram um programa no qual todos devem adequar suas operações ao mesmo plano. Assim, o governo também investiu, mas não para coletar dados publicados, e sim para gerar dados exclusivos.
O que estamos vivenciando hoje, é que ainda há espaço para o “espírito” do Guarda-livros, aqueles que nos antecederam na profissão e que mantinham a escrituração contábil a “7 chaves”, ainda que haja ações na direção do controle social.
Não podemos ignorar que a evolução tecnológica trouxe muitas empresas para a “vitrine” dos dados, substituindo, em alguns casos, a publicação das demonstrações contábeis em jornais impressos, para edição nas redes sociais da empresa.
Também, as normas de compliance e controle social com a publicação de códigos de ética ou de conduta, manuais que atendam à Lei Anticorrupção e ainda sistemas e processos de acolhimento de denúncias, tanto como ouvidorias quando “relacionamento com o cliente”. Estamos, mais uma vez, tratando das grandes empresas ou de empresas nacionais, no sentido de atuação em várias unidades da federação.
Se conseguirmos combinar essa publicação nas redes sociais com a obrigatoriedade de todas as empresas publicarem seus dados, ainda que seja um processo político, todos ganharão bastante: o governo, com mais dados publicados; os empresários, com a divulgação de relatório que mostrem seu empenho junto a sociedade; os funcionários e demais interessados com acesso a números e ações que geralmente não são divulgadas; e, nós profissionais, com o aprimoramento das normas que tratam dessas divulgações, pois estaremos prestando os serviços para o qual fomos formados: gerir dados para fornecer informações para a tomada de decisão.
A tecnologia está acessível para apoiar ações de transparência, mas, nós precisamos assumir esse papel de publicar, até porque, como sempre registrei em minhas palestras, transparência boa é a “dos outros”.
Newsletter IPC: Como os contadores devem se preparar para atuar nas empresas de hoje e do futuro?
AAM: A formação acadêmica precisa de revisão permanente, pois a sociedade evolui, e temos que olhar para o futuro de cinco anos sempre, pois quatro são em sala de aula e o quinto será a confirmação da efetividade do esforço das Instituições de Ensino Superior com a “colocação” do seu egresso em boa posição no mercado.
Já os profissionais precisam avaliar permanentemente sua atuação. Creio que a melhor opção seja participar de eventos e conversar com outros colegas. Sempre aprendemos algo nessas conversas. Inclusive, diferenciar aqueles que tem boa oratória e pouco conteúdo, situação que também, e infelizmente, estamos vivenciando a cada dia.
IPC: Como a onda dos fatores ESG impactam na contabilidade?
AAM: É certo que não podemos ignorá-los, mas ainda vejo a adoção desses indicadores com certa preocupação. Especificamente na questão ambiental, verificamos que muitas empresas europeias investem recursos na manutenção e preservação ambiental em outros países e as nossas um montante menor. Essa desvantagem, na minha modesta opinião, deveria ter avaliação inversa. Afinal de contas, eles já degradaram grande parte dos ecossistemas em seus países e, agora que carecem de recursos naturais, investem na preservação e não na industrialização, impedindo nosso crescimento econômico e buscando manter-nos na condição de “país produtor de commodities”.
Na questão social estaremos sempre em desvantagem, assim como os demais países em desenvolvimento. Fizemos escolhas erradas nos últimos 20 anos e estamos arcando com as consequências.
Vivenciamos programas sociais escravagistas e pouco investimento no incentivo ao empreendedorismo e, principalmente, em infraestrutura. Em abril de 2019 recebemos a seguinte manchete na imprensa: “País já tem 8,1 milhões de microempreendedores formais”; “veja atividades em alta entre MEIs”. Em janeiro de 2021, a manchete já era: “Brasil tem recorde na abertura de novos MEIs e ultrapassa 11 milhões”, diz Sebrae. Além de todo esse esforço, continuamos não investindo no microcrédito e reclamando que o desemprego passou de 12 milhões para 14 milhões e meio no mesmo período.
O espírito empreendedor falou mais alto, principalmente nesse momento de pandemia, e pode, em muito, ter contribuído para a mitigação do resultado do desemprego. Isso, sem considerar a quantidade de ambulantes sem o devido registro. Sobram discursos e faltam ações objetivas: somos um país de empreendedores e será normal termos mais registros de MEI do que carteira assinada.
E, na questão de governança, até acho que estamos indo bem. Como já registramos, as empresas estão criando seus códigos de conduta, as maiores com ouvidorias e com a participação de representantes da sociedade civil organizada em seus conselhos, e alguns ensaios no controle social que decorre de uma transparência mais assertiva. Creio que esse processo será menos discriminatório para nossas em relação às empresas internacionais.
Creio que os indicadores ambientais e sociais deveriam ser repensados para a realidade mundial. Governos de países, empresas e suas fundações, e entidades que arrecadam recursos, devem contribuir com ações governamentais e privadas, mas não podemos juntar no mesmo “balaio”, aqueles que já degradaram e que agora possuem tecnologia e importam nossa matéria prima, com as nossas empresas que possuem menos recursos, com uso de tecnologia restrita e que enfrentam escassez de matéria-prima, pois grande parte é exportada.
Se, por um lado, temos que reconhecer que precisamos nos empenhar mais, por outro, imagino que temos que defender mais as empresas nacionais. Às vezes, fazemos pouco, pois temos pouco recurso, mas o sacrifício é bem maior do que para aquelas empresas com muito recurso.
IPC: Como pensar na contabilidade levando em conta a sustentabilidade do negócio?
AAM: Já vivenciei inúmeras discussões sobre indicadores, demonstrações e relatórios específicos, mas, pouco sobre o sistema de custo. Estou convicto, por exemplo, que o imobilizado sempre será imobilizado e, por isso, uma empresa que investe na aquisição de barreiras de contenção para o seu negócio, não está investindo no meio ambiente.
Creio que se estivesse internalizando para o preço todo o desperdício gerado e o risco de causar um dano, levaria para o preço o retorno necessário para seu produto ser considerado ambientalmente “adequado”.
Este é o caso da verdura orgânica que é mais cara que a tradicional, ou seja, muitas empresas preferem investir em um sistema ISO ambiental e social, ou publicar um Balanço Sócio Ambiental, do que rever seus processos de produção, buscando reduzir o consumo de matéria-prima e de recursos escassos (como a água), ou ainda de implantar processo de reaproveitamento de resíduos próprios ou captados no mercado.
O que estamos acompanhando é o investimento em tecnologia para produzir uma quantidade maior com a mesma quantidade de matéria prima e, mais recentemente, investimento em energia solar para redução do consumo de energia, sem se preocupar com a internalização do custo de reaproveitamento e gestão de resíduos.
A manutenção da produção de bens em elevado patamar continua consumindo recursos escassos como a água doce e as áreas próprias para plantio, em quantidade maior do que possuímos disponível para a manutenção da própria vida. Com a nova legislação de “logística inversa”, começaremos a internalizar parte deste custo oculto e não conhecido, mas, precisamos aprimorar mais.
Não ouso afirmar que tenho a solução para esse equilíbrio, mas, não o atingiremos sem mais estudos, sem discussões internacionais, sem o compromisso das empresas em trazer a tecnologia para aplicação nos países em desenvolvimento, sem o compromisso dos países em desenvolvimento investirem em educação e acabarem (não consegui expressão mais adequada) com benefícios trabalhistas que não conseguiremos arcar e que impedem empresas de se instalarem aqui e, ainda, sem a aprovação de leis mais rígidas no consumo de nossos recursos ambientais sem a devida contrapartida.
Creio que os profissionais contadores precisam debater mais a internalização dos custos ambientais para os processos de fabricação, trazendo para o preço não apenas o custo de uma placa de madeira, mas, das “rebarbas” e sobras dos cortes naquela placa, que devem ser acrescidas, ou seja, se o desperdício e perda são de 20%, o custo de aquisição da placa deve ser 120% e não apenas 100% do custo de aquisição.
Esse, seria um processo justo, pois o empresário deverá rever o processo de fabricação ou criar um mercado suplementar ao seu. Mais trabalho, mais pesquisa, mais engajamento.