No Brasil, existem atualmente mais de 870 mil organizações não governamentais (ONGs) e pequenas sociedades civis, que compõem a maior parte desse setor. Com uma expressiva participação de 4,3% no Produto Interno Bruto (PIB) nacional, o Terceiro Setor também é responsável por 5,8% das ocupações no país, evidenciando sua relevância econômica e social.
De acordo com Marcelo Monello, sócio da Monello Contadores, o Terceiro Setor se revela um segmento da sociedade de extrema importância, caracterizando as inquietudes e os interesses da população por uma sociedade mais justa e igualitária. Através desse setor, diversas organizações desempenham um papel crucial na implementação de políticas públicas, respondendo às necessidades coletivas e buscando assegurar os direitos sociais, além de promover a inclusão e o desenvolvimento comunitário.
No contexto atual, a tecnologia se destaca como uma aliada indispensável na transformação da gestão financeira nas organizações do Terceiro Setor. Na visão dele, “hoje não há como se falar de uma Entidade do Terceiro Setor com práticas de governança e transparência sem a utilização de tecnologias”. Essas inovações têm aprimorado e qualificado as condições de atuação do interesse público nas entidades.
A presença da inteligência artificial no Terceiro Setor é um exemplo claro dessa transformação. Monello explica que “pesquisas qualitativas realizadas em bancos de dados públicos, como a identificação de demandas locais e o público-alvo, aliadas ao georreferenciamento, trazem mais condições técnicas e qualitativas para a eficácia de investimentos sociais”. Essa abordagem permite uma inserção qualitativa de indicadores, produzindo possibilidades adequadas de recursos financeiros com um maior impacto social.
Além disso, a utilização de aplicativos financeiros se torna extremamente necessária para a gestão de entidades que estabelecem parcerias com a administração pública. “A lei 13.019/14 determina regras para essas parcerias, exigindo como condição a transparência e a qualidade da informação”, acrescenta ele. A lei destaca que a comunicação com a administração pública e a população deve ser feita preferencialmente por meios eletrônicos, facilitando o acesso e a guarda dos documentos digitais por pelo menos 10 anos após a conclusão do projeto.
Embora existam diversas ferramentas tecnológicas no mercado dedicadas à gestão das entidades, Monello enfatiza que sua concepção deve ter como base a gestão orçamentária de programas, projetos e serviços. “O acompanhamento diário do orçamento promove o amadurecimento profissional dos integrantes da gestão e a agilidade dos processos”, explica ele, ressaltando a frequência de decisões críticas tomadas por voluntários que dedicam seu tempo, muitas vezes escasso, para o bem da comunidade.
A tecnologia também melhora a comunicação entre os gestores e os profissionais contábeis. “Estabelece um padrão de processo, auxilia na identificação das naturezas das receitas e despesas e melhora o entendimento do ciclo operacional”, destaca ele. Essa sinergia torna a Demonstração do Resultado do Período (DRP) o principal documento comprovativo da execução, potencializando o controle e a conformidade dos processos administrativos.
A qualidade das informações contábeis é ainda mais crítica para garantir a sustentabilidade e a manutenção das imunidades e isenções. Monello alerta que “a lei das parcerias (lei 13.019/14) em seu artigo 33 determina que a escrituração deve seguir os princípios fundamentais da contabilidade”.
Além disso, as ferramentas que organizam o banco de dados dos doadores são essenciais. “A utilização assertiva desses aplicativos promove a comunicação direta e qualificada com os doadores e mantenedores, podendo auxiliar na construção de perfis e na identificação de projetos que atraiam mais esse suporte”, complementa Monello. Essa boa gestão, aliada à qualidade da informação contábil, é vital para garantir a recorrência de ingressos financeiros e a individualização dos projetos a serem financiados.
A importância da contabilidade digital e das métricas de impacto social no Terceiro Setor
Em um mundo cada vez mais digital, a contabilidade desempenha um papel fundamental no fortalecimento das entidades do Terceiro Setor. Marcelo explica que “os sistemas servem para dar agilidade e organização às informações e documentos que serão analisados pelo profissional da contabilidade.” A escolha do sistema certo é essencial; a participação do contador é “fundamental e estratégica” para assegurar que os requisitos técnicos da contabilidade sejam atendidos.
Os processos contábeis devem ser bem estabelecidos, especialmente os que tratam do controle e das conciliações. “As ferramentas devem estar parametrizadas adequadamente para garantir a origem das informações”, diz Monello. Isso proporciona ao profissional da contabilidade a segurança e agilidade necessárias para a verificação dos dados. “A informação eletrônica deve ser confrontada e verificada pela gestão e pelos profissionais da contabilidade”, completa. Ele ressalta a importância de testar a autenticidade das transações e a condição técnica de seu registro contábil.
Além das práticas contábeis, a integração das métricas de impacto social aos relatórios financeiros é vital. “As métricas de impacto social são exigências das parcerias governamentais”, pontua Monello. Elas devem ser estabelecidas nos relatórios contábeis e de gestão das entidades, visto que todos os recursos públicos estão atrelados ao desenvolvimento de atividades que incluem a implementação de métricas qualitativas em seus contratos.
Monello observa que o conceito de utilização de métricas evoluiu do antigo balanço social para os relatos integrados, alinhando-se às práticas ESG (Ambiental, Social e Governança). “Esses relatos demonstram o alto impacto social principalmente nas entidades do Terceiro Setor,” afirma ele.
Desafios e tendências no financiamento coletivo e na regulação do Terceiro Setor
As entidades do Terceiro Setor, fundamentais para a captação de recursos e o desenvolvimento de ações sociais, enfrentam uma série de desafios e transformações em sua gestão financeira. Monello destaca que “é uma realidade do terceiro setor a participação ou criação de fundos para a captação de recursos”, características intrínsecas às organizações inseridas nas comunidades. Nos últimos anos, a aplicação de tecnologias para o recebimento e gestão desses recursos tem proporcionado mudanças significativas. A entrada de transações via PIX, por exemplo, “está mudando o processo de comunicação e transparência”, diminuindo a necessidade de serviços intermediários.
A qualidade da informação contábil, juntamente com a segurança na identificação do doador, melhora o ambiente de conformidade nas organizações. Monello aponta que “processos mais intensos de auditoria ajudam a captar ainda mais com credibilidade e segurança”, reforçando a importância de uma gestão financeira transparente e eficiente.
Entretanto, as ONGs no Brasil enfrentam complicações regulatórias que muitas vezes dificultam suas operações. Para quem não trabalha nesse setor, a percepção é de que esse segmento é simples, com transações não complexas. No entanto, a realidade é outra, pois “as legislações são intensas, burocráticas e muitas delas desconexas”, criando um ambiente regulatório hostil. Monello ressalta que a legislação tributária, em particular, tem se mostrado “muito difícil e, principalmente, inviabiliza muitas ações das entidades sociais”.
Dadas suas características de interesse coletivo, as entidades do Terceiro Setor deveriam contar com todo o apoio governamental necessário para executar suas atividades com mais recursos e menos burocracia. No entanto, essa não é a realidade enfrentada por muitas organizações. O SESCON SP, há anos, lidera uma proposta de enquadramento das entidades do Terceiro Setor no Simples Nacional, visando à desburocratização e à diminuição das obrigações acessórias. Contudo, “as entidades não têm enquadramento para tal”, o que resulta em um ônus significativo da burocracia e em custos operacionais mais altos, diminuindo os resultados de captação de recursos.
Além disso, o reconhecimento das imunidades tributárias representa outro desafio. Enquanto as entidades podem se autodeclarar imunes em âmbito nacional, o procedimento para o reconhecimento de suas atividades econômicas junto à Prefeitura e ao Estado é “muito tortuoso, de difícil reconhecimento”, onerando as operações e, frequentemente, desviando recursos essenciais para suas finalidades sociais.
Rumo à regulação e fortalecimento das ONGs
A criação da Frente Parlamentar é vista como uma medida fundamental para o desenvolvimento de um ambiente regulatório adequado às entidades de interesse público, como as Organizações Não Governamentais (ONGs). Esse novo espaço visa envolver as ONGs nas discussões sobre propostas de regulação e fortalecimento do setor. Uma das sugestões em análise é a consolidação das leis do Terceiro Setor, que reuniria todas as legislações pertinentes e eliminaria os conflitos entre as leis, facilitando o entendimento e o conhecimento por parte das entidades.
Além disso, há uma expectativa de que a criação do Simples Social volte à pauta, buscando trazer as entidades para a regularidade fiscal de diversas atividades econômicas que contribuem para o Estado e, principalmente, para a sociedade. Essa iniciativa tem como objetivo desburocratizar e simplificar as operações das ONGs.
Embora as legislações tenham se aprimorado ao longo do tempo, com relevantes modificações, é importante ressaltar que ainda há necessidade de desburocratizar o papel das entidades sociais no Brasil. “O Brasil precisa fomentar ainda mais a condição das entidades sociais para desenvolver, junto ao Estado, aquilo que a população precisa”, comenta Monello.
A colaboração entre o governo e as ONGs é crucial para enfrentar os desafios sociais e promover o desenvolvimento sustentável. Monello finaliza comentando que o governo depende essencialmente dessas entidades para implementar políticas públicas de proteção social que são necessárias para a sociedade. Por outro lado, as organizações precisam entender que “jamais substituirão o papel do governo como organizador e fomentador de uma sociedade justa e solidária”.