Que o mundo mudou nos últimos dois anos ninguém dúvida. Temas que antes ainda estavam de longe no horizonte das empresas se tornaram essenciais. É o caso das questões sociais e ambientais globais, regionais e locais que voltaram à pauta e não devem sair tão cedo. As mudanças climáticas, a ampliação das desigualdades sociais e as inovações tecnológicas têm imposto impactos significativos a estratégia e cadeia de valor. Este cenário deixa mais em evidência o papel da governança corporativa e dos agentes envolvidos.
Para falar sobre esse assunto, Pedro Melo, diretor geral do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC), é o entrevistado da Newsletter IPC de novembro. Confira abaixo:
Newsletter IPC: Como avalia o cenário atual da governança corporativa no Brasil e no mundo?
Pedro Melo: Creio que a pandemia tornou ainda mais clara uma percepção que sustentamos há muitos anos: a governança corporativa é um diferencial competitivo para as empresas, além de um fator de atração de recursos e talentos. São práticas que protegem e geram valor para as companhias. Isso é algo cada vez mais compreendido por líderes do Brasil e do mundo. Essa constatação, para nossa satisfação, não se restringe somente a líderes de companhias de capital aberto, mas também é compreendida por empresas familiares, estatais e até mesmo entre jovens que estão à frente de startups.
No IBGC, por meio de diversas pesquisas que temos realizado ao longo dos últimos anos, essa impressão é cada vez mais latente. Nossos estudos apresentam dados que corroboram essa evolução, ao mesmo tempo em que nos mostram que ainda há espaço significativo para o avanço das boas práticas de governança corporativa.
No Brasil, o Banco Central divulgou em meados de setembro algumas resoluções relativas a riscos e oportunidades ambientais e climáticas, trazendo a questão ESG para o centro da regulação bancária e estabelecendo regras para o reporte dessas questões, que passarão a ser obrigatórias para as instituições financeiras a partir de 2023.
Em nível mundial, há também uma grande pressão por regulação e por temas ligados às melhores práticas de governança corporativa. Usando ainda os fatores ESG como referência para esse debate, uma pesquisa da PwC feita em 2021 mostra que, somente na Europa, os ativos do mercado privado ligados a temas sociais e ambientais poderão alcançar entre € 775,7 bilhões e € 1,2 trilhão até 2025, muito acima dos € 253 bilhões totalizados em 2020, atingindo 40% dos ativos do setor na Europa. Não Podemos ficar alheios a essa realidade.
News IPC: Como o crescimento dos fatores ESG contribuem para a governança corporativa?
PM: A evolução dos debates de governança corporativa saiu da abordagem concentrada majoritariamente nas relações entre acionistas, conselheiros e gestão. Quando abordamos a importância dos fatores ESG, esse desenvolvimento das últimas décadas precisa ficar bem claro.
Hoje, ainda em meio à pandemia do novo coronavírus, o papel da agenda temática em torno do ESG para a governança corporativa se tornou muito mais nítido. A tragédia social que vivemos evidenciou ainda mais a urgência da tomada de determinadas ações por parte dos líderes das organizações empresariais. Os investidores nacionais e internacionais buscam hoje dimensionar o potencial de seus investimentos a partir de métricas que envolvam as questões ESG.
Empresas com boas práticas ESG em geral se saíram melhor durante a pandemia. Elas mostraram que estão mais preparadas para lidar com crises dessa dimensão, dando a devida ênfase à letra “G” desse acrônimo, que está cada diz mais presente em nossas decisões. Sem boas práticas de governança, não há “E” e “S” que se sustentem adequadamente.
Está claro, portanto, que um posicionamento sólido em ESG vai se tornar um padrão mínimo exigido. Os valores dessas práticas precisam fazer parte do propósito, dos valores da empresa e devem ser incorporados à estratégia corporativa.
News: O que devemos esperar de novas práticas em governança corporativa para 2022?
PM: Acabamos de acompanhar os desdobramentos da COP26, na Escócia. Temos a percepção de que cada vez mais as mudanças climáticas vão exigir das empresas novas atitudes em relação às suas práticas de governança corporativa. Espera-se também um aumento gradativo da convergência de padrões nessa esfera ambiental.
Existe também a expectativa de que a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) estabeleça uma regulação sobre a divulgação de informações da agenda temática em torno do ESG, com o propósito de que o chamado “greenwashing” seja evitado. Como eu disse anteriormente, há uma forte demanda sobre esse tema por parte dos investidores e é fundamental que haja transparência em todo esse processo.
Em nível internacional, a OCDE deve fazer seu processo de revisão de seus princípios de governança. Esse tipo de alteração sempre influencia diretamente uma série de políticas públicas pelo mundo afora – e o Brasil certamente não ficará alheio a isso, ainda mais num ano de eleições presidenciais e com o andamento do processo de adesão a esse órgão internacional.
News: Como avalia a contabilidade dentro dos processos de governança corporativa?
Para o IBGC, a governança corporativa se apoia em quatro princípios: transparência, prestação de contas, equidade e responsabilidade corporativa. Todos esses pilares podem ser relacionados à contabilidade.
No que diz respeito especificamente à contabilidade, a transparência permite que investidores e demais partes interessadas olhem para as organizações (públicas ou privadas) e analisem sua saúde financeira e eficiência. A prestação de contas, por sua vez, além de remeter às regras contábeis em si e ao regime de divulgação de informações, pressupõe que a atuação da organização e de seus administradores será submetida ao escrutínio das partes interessadas e que será possível responsabilizar os agentes pelos atos que eles cometem. A observância de ambos os princípios, tanto no setor público quanto no privado, confere legitimidade à atuação de cada um.
No meu modo de ver, a contabilidade também precisa respeitar o princípio da equidade, na medida em que diferentes partes interessadas devem ter acesso à informação contábil que considere seus direitos, deveres, necessidades, interesses e expectativas. Acrescento um ponto que me parece relevante: a responsabilidade corporativa também pressupõe que a companhia zele pela sua saúde econômico-financeira, além do seu impacto na sociedade e meio ambiente, temas para os quais existe cada vez mais demanda para que sejam integrados com as informações, ajudando a construir uma narrativa única sobre a atuação da organização.