Em 1978, a Comissão de Valores Imobiliários (CVM), uma autarquia ainda em seus primeiros passos, definiu, por meio da Nota Explicativa n. 09/1978, a dimensão da importância da Auditoria Independente para o bom funcionamento do mercado de valores mobiliários. E o fez em termos inequívocos: “Por sua relevância, uma auditoria efetivamente independente constitui um suporte indispensável ao bom desempenho das atribuições cometidas à CVM”.
E não poderia ser diferente, visto que o objetivo final do trabalho de Auditoria Independente guarda relação direta com o tema central do mandato do regulador do mercado de capitais: a tutela da informação disponível ao público sobre os emissores e seus valores mobiliários. Pode-se dizer que, no sistema estabelecido para assegurar que o mercado se informe adequadamente, os papéis do regulador e do auditor independente se complementam.
A atividade de Auditoria Independente de emissores e integrantes do sistema de distribuição funciona sob supervisão da CVM, regulador estatal, assim como ocorre com outros prestadores de serviços do mercado de valores mobiliários. No entanto, seu papel é bastante diferenciado em relação a qualquer dos outros ditos gatekeepers, na medida em que opina sobre o principal conjunto de informações que as companhias divulgam sobre sua situação patrimonial e financeira: as demonstrações contábeis preparadas pela administração.
O Relatório do Auditor, que reflete sua opinião técnica e independente, influencia substancialmente a atenção que a companhia receberá das autoridades, de suas contrapartes contratuais e do público investidor. O potencial que uma companhia tem de estabelecer e manter relações comerciais e financeiras relevantes apresenta inegável correlação com sua capacidade de preparar demonstrações contábeis que permitam ao auditor independente emitir seu relatório sem ressalvas.
Existe, portanto, claro interesse público no resultado dos trabalhos da Auditoria Independente e, em vista disso, há regras de naturezas distintas que pautam sua execução, com foco em aspectos como procedimento, controles e registros. As próprias firmas de auditoria, para assegurar o adequado transcorrer de seus trabalhos de forma técnica e independente devem adotar, como de fato adotam, políticas estritas que pautam seu relacionamento com os clientes, balizadas por conceitos norteadores como o do ceticismo profissional.
Por sua vez, organizações profissionais desenvolvem regras e princípios que governam, em bases mais amplas, os trabalhos das firmas sob seu âmbito de influência, local ou internacional, no interesse do estabelecimento de uma percepção de alta qualidade técnica e independência do trabalho de auditoria. A esse feixe de normas, de firmas e de organizações, se sobrepõe o regramento estatal e a supervisão por parte do regulador, que se destinam a assegurar os mesmos objetivos — independência e qualidade profissional.
Diante desse quadro, em que sobressai a relevância do trabalho entregue pela Auditoria Independente, o tema do papel e da responsabilidade dos auditores independentes se revela repleto de meandros a serem explorados e pode despertar debates nada triviais. A disciplina da atividade de auditoria e contabilidade, inclusive, costuma ser objeto de forte escrutínio em momentos de questionamento da credibilidade do mercado, a exemplo do que ocorre quando são reveladas fraudes de grande repercussão.
Para que os auditores possam cumprir seu papel no complexo sistema formado por diversos agentes estatais e privados que dão sustentação aos mercados financeiros e de capitais, portanto, é preciso que haja clareza quanto ao seu papel e que seus deveres e responsabilidades sejam estabelecidos e executados de forma razoável e previsível. Não por acaso, a característica-chave da auditoria em questão lhe adjetiva e determina seu modo de funcionamento: a independência.
Para avançar nesses debates, é vital aprofundar a compreensão da sociedade sobre os deveres, possibilidades e limites das auditorias, das empresas e das autoridades reguladoras. A colaboração entre esses elementos é essencial para criar regras e mecanismos que promovam as melhores práticas, beneficiando o mercado como um todo. A transparência, independência e qualidade técnica das auditorias independentes são pilares para o avanço contínuo e a sustentabilidade dos mercados financeiros e de capitais.
Artigo escrito por Marcelo Barbosa é advogado. Foi presidente da Comissão de Valores Imobiliários (CVM) de 2017 a 2022 e prefaciador do livro “Auditoria Independente: Missão e Responsabilidades – Estudos e Pareceres”, do Ibracon – Instituto de Auditoria Independente do Brasil.
Fonte: Conjur